Escrita Tribal

terça-feira, novembro 15, 2005

Era uma vez...

Era uma vez uma princesa que vivia no cimo de uma torre,
e como todas as princesas adolescentes,
queria mais liberdade do que os seus pais lhe estavam dispostos a dar.
Por isso a princesa sentia-se presa e sempre que podia, escapava-se,
encontrando a satisfação da liberdade em tudo o que os seus pais não queriam que ela fizésse,
mas é mesmo assim com os jovens.

Essa princesa era especial, ela tinha nascido com uma missão importante
trazia dentro dela a semente da paz, a sabedoria da natureza e o brilho do cristal,
mas ela não sabia nada disso...

Dia após dia, a princesa continuava a sentir-se presa e quanto mais se sentia assim,
mais se escondia de todos, e fugia para a liberdade de tudo o que lhe era proibido.
Assim, se afastava cada vez mais de tudo quanto era belo e mágico e que a chamava dentro dela,
e se aproximou de tudo quanto era caótico e enfeitiçante.

Aprendeu a suportar a vida pelo sabor dos venenos e anestesiantes,
mas quanto mais o fazia, mais se afastava da sua missão:
a de ser uma menina-estrela, que parecia cada vez mais distante.

Refugiada e fechada de um mundo que a magoava, ela desejava não sentir,
e afastava-se também de toda a luz dentro dela.
Aos poucos a semente, a menina-estrela que esperava dentro dela para nascer
foi ficando abandonada, a sua voz tornou-se lamento, e foi abafado pelo ruído da vida.

Um dia um príncipe sem destino passou perto do reino da princesa.
Entrou numa taberna, sítio pouco próprio para um príncipe,
mas a alegria e simplicidade daqueles lugares sempre o tinham divertido.
Mas pouco importava para a sua casta de nobreza,
pois era um príncipe sem reino, era um príncipe sem coroa, e era um príncipe sem ouro.
Ele procurava pelo mundo pedaços de liberdade e de beleza pura,
para aumentar o seu único tesouro: o seu mais belo palácio, contruído e protegido no seu peito.

Nessa taberna encontrou uma rapariga com um olhar que lhe despertou estranhamente a atenção.
Nos seus olhos achou um brilho que nunca tinha encontrado antes, e isso deixou-o muito curioso.
Por seu lado, a rapariga misteriosa, princesa disfarçada,
também se sentiu atraída por aquele nobre estranho.

Num dia de baile real, os dois voltaram a encontrar-se.
Ele fugira do barulho da festa e ela vira-o sair para a varanda.
Na noite fria, ele cobriu-a com a sua capa, e beijaram-se à luz da lua cheia.
A princesa contou-lhe poemas, e ele contava-lhe histórias de países e culturas longínquas,
enquanto se encantavam mutuamente.

Nessa noite, o príncipe teve uma visão:
durante um sonho, meio acordado, meio adormecido,
o príncipe viu uma menina agachada num canto de um sótão poeirento e escuro.
A menina estava de cócoras, agachada e agarrada às próprias pernas,
chorava de solidão, com falta de amor e de atenção.
Chorava porque estava abandonada, tinha sido esquecida.
O príncipe aproximou-se da pequena, de pele branca e cabelo escuro.
Ao vê-lo ela virou-se e perguntou-lhe se tinha vindo para cuidar dela.
E ele disse que sim, que ia cuidar dela, e não a deixaria mais sozinha.
Abraçou a pequenita nos braços.

Acordou, com uma nova esperança, com um novo sorriso - estava feliz.
Mergulhado nos olhos daquela rapariga, o príncipe sem destino
tinha encontrado dois lagos onde respousar,
banhado por aquela imensa luz que havia encontrado
e cuja origem tinha descoberto.

Seguiram-se dias de magia, dias de amor e de ternura
Como o são todos os dias dos apaixonados de fresco.

Naquele mundo de sensações fortes já o príncipe tinha habitado, mas há muito que deixara para trás.
Noutros tempos já ele tinha tentado conhecer a vida tal como ela se vestia - cruel:
misteriosa quando nos fascina, mas rude quando nos arruina os sonhos.
Sempre fora um mundo onde a paz interior e a felicidade,
dependera da sua capacidade de dar a tudo uma perspectiva positiva,
de ver beleza nos pormenores das coisas feias,
de lhes achar um sentido.
Isso porém, era uma manobra que o seu coração inexperiente nem sempre conseguia concretizar.
Já no Passado tinha aceite que aquele mundo alucinante entrasse no seu palácio,
e havia saboreado a sua amargura impiedosa.

Por isso havia decidido caminhar sem destino,
após concluir que só as expectativas poderiam levar às desilusões.

De novo no reino, rodeava-se agora de gente do povo e da realeza.
A proximidade de tais pessoas inquietavam-no, pois reconhecia a falsidade dos seus sorrisos,
as suas cortesias ensaiadas, e a desconfiança com que o olhavam.
Não lidava com pessoas reais, mas sim com perigosas personagens de um teatro,
que rapidamente poderiam mudar de cara e corpo, mestres a representar farsas.
A jovem inconsciente da luz que trazia em si, vivia nesse mundo à deriva.
Saboreava os doces venenos dos sentidos, agarrando como podia o que alcançava,
mesmo quando já dificilmente conseguia manter o que tinha nos braços,
mas os jovens são mesmo assim.
Habituado a outro mundo, o príncipe tentou enquanto pôde acompanhar a jovem,
mas as pessoas do reino sabiam que ele não pertencia ali,
e aos poucos armadilhavam o seu caminho,
afastavam-no e faziam-no sentir indesejado.

Aos poucos o príncipe trocava o refúgio do seu palácio interior,
pela incisiva solidão daquela multidão, cada vez mais desamparado e abandonado.
O seu sorriso desaparecia de dia para dia, e a jovem apercebeu-se da diferença,
pois já nem a sua presença restaurava ao príncipe o seu brilho.

Se de início achou pertinente falar com a jovem amada sobre isso,
percebeu que não tinha o direito de interferir na sua liberdade.
Sentiu que afinal, o intruso no reino era ele.

O mundo da jovem matava-o lentamente,
quebrava-lhe até a vontade de resistir, e ele consciente de tal, permitia-o,
em troca de uma princesa que cada vez mais se afastava,
levada pelo fascínio dos mesmos venenos que o magoavam.

Numa noite ele sonhou o que a sua mente negava - que ela o abandonaria, se continuássem assim.
Num ímpeto de coragem, o príncipe tentou ainda despertar a jovem,
tentando evitar o desmoronar de uma história de amor.
Nos seus anos de viagens ele havia aprendido muitas coisas,
"estranhas" para quem leva uma vida entre muralhas.
Por artes mágicas congelou a sua alma num cristal,
e com ele fez um desenho onde revelava a sua eternidade,
os seus poderes,
e os seus segredos.
Ofereceu-o à princesa, revelando-lhe parcialmente o que lhe entregava,
na esperança que tal visão a levásse a desviar os véus que a cegavam.
Ela hesitante acabou por aceitar,
sem saber ao certo aquilo que lhe era confiado.

Resistindo o mais que pôde,
chegou um dia porém que o príncipe não conseguiu mais adiar as suas lágrimas.
Todas as suas tentativas falharam,
ele era impotente contra o reino que aprisionava a princesa
e a seduzia com feitiços e ilusões.

A princesa havia-o deixado, e ele a ela, pois não conseguia mais seguí-la,
pois vê-la e tocar-lhe faziam-no sentir todos os venenos que ela consumia.
Sem aviso viraram as costas.
Nem sequer falando do assunto.
Mas pouca diferença fazia, pois já mal falavam, mal se viam.

Faminto de sorrisos e alegria, o príncipe voltou as costas ao reino onde já pouco sabia da princesa,
e a recordação da qual só piorava essa fome. Tinham-se deixado, por fim.

Antes de sair das muralhas do reino havia ainda um assunto pendente:
uma menina estrela que ele havia abraçado,
a quem havia feito uma promesa.

O príncipe caiu de novo num sono mágico
e foi ao canto escuro dentro da jovem.
Entre lágrimas lá a encontrou de novo,
agachada como na primeira vez que a vira,
mais abandonada do que nunca.

O príncipe pediu-lhe desculpa, mas tinha de partir.
A princesa havia aprisionado em si a menina.
Recusava-se a deixá-la ver a luz do dia,
pois através da menina era obrigada a enfrentar a feia realidade.
Era a menina que lhe permitia sentir o amor e olhar o mundo, achar a beleza,
mas ela também lhe abria as portas para sentir a dor e a confusão,
o espelho do caos que esse mundo semeava no seu âmago.

Tinha-a aprisonado, tinha-a levado com ela para longe do seu abraço.
O príncipe já nada podia fazer...
Despediu-se e deixou-a.

Saiu pelas portas do reino. Agora sem brilho e sem sorriso, ninguém o olhava.
Todos lhe viravam a cara e o apagavam da memória.
Desejavam esquecer aquele estranho que um dia havia querido "roubar" a bela princesa,
libertá-la da torre e das muralhas onde julgavam eles,
ela se mantida longe do mundo e fora de perigo.

Por muitas semanas o príncipe nada mais ouviu da princesa.
Chegavam-lhe rumores do reino mas ele preferia afastar-se quando isso acontecia,
esquecer a tortura que havia passado.
Queria esconder-se da vergonha da sua tolice,
de ter mais uma vez caído nas armadilhas de políticos e de bôbos-da-corte.

Olhava a fogueira numa noite estrelada.
Partilhava o calor com um jovem aprendiz cavaleiro do Reino da Luz,
que havia cruzado o seu caminho e agora o acompanhava.
Fechou os olhos por segundos, e na escuridão das suas pálpebras viu um rosto feminino.
Abriu os olhos surpreendido
e pensou que estranha entidade do outro mundo teria vindo atormentá-lo.
Já estava habituado a seres estranhos que descem dos sonhos e dos pesadelos,
e se vêm alimentar dos corajosos ou dos medrosos.
Não oferecia grande simpatia a nenhuns desses seres nem perdia tempo a dialogar com eles.
Sentia os seus movimentos, e saber que estavam longe de si bastava-lhe.
Comentou apenas por curiosidade o que tinha acabado de ver,
e o jovem aprendiz olhando-o, confirmou uma menina a seu lado,
com a mão no seu ombro esquerdo.

De imediato o príncipe apercebeu-se quem era a "entidade".
O jovem aprendiz exclamou ainda que a menina não estava só.
Atrás dela, como que colada às suas costas, estava uma espécie de larva,
um vampiro de dentes afiados que sugava a energia da menina.
Confuso, o príncipe sentiu-se de novo numa armadilha.
A menina pedia-lhe ajuda, queria de novo um abraço,
mas quem a comandava era aquele ser saído de um pesadelo.

Já havia deixado de tentar salvar fosse quem fosse,
porém o seu companheiro afirmava-lhe que devia ajudá-la.
Cansado de vampiros e seres sombrios,
ele estava confuso e dividido entre o seu coração e a sua mente.
Escutava demasiadas vozes para ouvir a sua.
Sem mais paciência o príncipe fechou os olhos,
e atravessou a sua vontade através da janela do mundo dos sonhos,
onde as almas perdidas vagueam, onde os demónios se alimentam dos esquecidos.

A larva era um ser fraco, que arrancou sem esforço
Era porém um ser sem um corpo denso,
que se rasga como água, e da mesma forma se volta a juntar.
Não podia ser morto, mas podia ser assustado pela luz,
visto ser um ser que vivia nas sombras e na noite,
onde todos os seres desta natureza se podem esconder,
onde é mais fácil as emboscadas a jovens sem defesas.

Como era porém possível que a menina se tivésse afastado da sua prisão?
Somente se a princesa a tivésse rejeitado tanto que a sua ligação se tivesse rompido...
Tal coisa não lhe parecia possível... mas ele já não se surpreendia com aparentes impossibilidades.
Talvez aquele demónio de larva tivésse o poder de quebrar as correntes da princesa,
e levá-la com ele como isco para se alimentar de corações moles,
mas isso agora era pouco importante.
Tinha sim de decidir o que fazer com a menina-estrela.

Não ajudava mais ninguém, pensava o príncipe.
Já havia sofrido bastante pelos seus salvamentos falhados,
mas sabia que não era uma situação normal.
Ele tinha o poder para levar aquele pedaço de alma para fora dali,
de entregar uma menina perdida ás mãos dos mestres-da-vida.
Se continuásse ali naquele limbo seria uma questão de tempo,
até que outra larva, ou bicho pior, a apanhásse nos dentes.

"Não é problema meu", pensou.
Agarrou na menina e levou-a até à princesa.
Era fácil voar no mundo dos sonhos,
onde o espaço não tem as mesmas leis do mundo "real".
Chegados à beira da princesa porém a menina recusou-se a ficar, e voltou para o príncipe.
"Chegou a este ponto...", pensou triste.
Percebeu que a menina havia sofrido demais,
que a princesa tinha perdido para sempre o brilho do olhar.
Não havia mais nada a fazer,
senão entregar a menina-estrela noutras mãos.

Agarrou então na pequena e voltou para perto da fogueira,
e ali o príncipe pediu ao seu coração que falásse ao coração de um anjo,
(pois ele sabia os corações conhecem-se todos),
para que viésse alguém buscar a menina perdida.
Desceu à sua frente então um anjo de armadura dourada.

Parou durante um segundo, estendeu a mão e voltou a subir
O príncipe voou atrás dele com a menina nos seus braços.
Ao longe aproximavam-se de uma aberta no céu escuro.
Por entre as nuvens viu um brilho azul, rodeado de nuvens brancas.
Estendeu os braços e a menina alcançou a mão do anjo dourado,
E ele deixou-se ficar um pouco para trás.

Por entre a abertura nas nuvens, antes de voltar a descer,
o príncipe viu ainda a menina num campo vasto sob um céu azul e luminoso,
acompanhada com muitas outras crianças que ali estavam felizes e finalmente em paz,
e aguardavam até ao dia em que pudessem de novo nascer.


A menina estava salva.


(continua...mas não aqui...)

4 Comments:

  • Bom conto. No entanto faz-me lembrar alguma coisa... algo que não consigo especificar. No entanto entendo um pouco a atitude do principe.

    By Anonymous Anónimo, at 7:43 da tarde  

  • espero conseguir evitar o mesmo fim de historia...

    By Anonymous Anónimo, at 6:44 da tarde  

  • Este não é o fim da história.

    By Blogger Paulo Trindade, at 8:08 da tarde  

  • eu sei...mas o aparente fim ke eu conheco..

    By Anonymous Anónimo, at 1:36 da tarde  

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